terça-feira, 10 de fevereiro de 2015

Eu explico

Estais todos ensimesmados, perguntando-vos quem tem razão na máscula e titânica disputa entre o novo governo grego e o velho governo alemão. Não vos preocupeis mais que eu resolvo isto de uma assentada: o governo grego claro.

Esta merda desta crise de merda tem várias dimensões, das quais admito que só percebo de algumas. A primeira e mais importante (embora ao mesmo tempo a menos importante como explicarei em seguida) é o debate macroeconómico. Em situação de crise generalizada, causada por um excesso de endividamento e quando as taxas de juro não podem baixar mais, é necessária austeridade ou estímulo económico? Direcciono-vos para o Krugman, que sabe mais disto do que eu e que tem razão. Os que previam a austeridade expansionista e o aumento da inflação devido às injecções de capital dos bancos centrais falharam nas previsões. Agora dizem, especialmente na Europa, que o problema foi que não se foi longe o suficiente. Já tratei deste argumento ao qual não me apetece voltar. Por outro lado os que disseram que era preciso estímulo e que uma injecção estapafúrdia de dinheiro acabado de imprimir na economia não ia causar inflacção tinham razão. Para mim isto está resolvido. Só falta mesmo que as pessoas que verdadeiramente interessam aceitem este facto.

Depois há a questão política, especialmente no que diz respeito à atribuição de responsabilidades*. Até hoje foi possível impor esta austeridade fornicadora à malta através do uso de uma generalização que nunca fez sentido: andámos a consumir acima das nossas possibilidades, logo agora temos que sofrer. Bardamerda! Não andámos, andaram, e digo isto sem querer entrar naquela coisa tonta de me referir aos políticos e aos poderosos como 'eles' e sugerir que são todos iguais. Mas a verdade é que o endividamento público em Portugal não foi feito para fortalecer o estado social mas sim para construir auto-estradas, financiar a Parque Escolar, enriquecer a EDP e a GALP e fazer merdas megalómanas como o Euro 2004 e o Magalhães. Terão, é verdade, o homem e mulher comuns beneficiado um poucochinho e temporariamente com os empregos que isto criou, mas perderam muito mais com a conta que veio a seguir. Acima de tudo quem ganhou foram o Jorge Coelho, o Ferreira do Amaral e outras bestas afins, incluindo o nosso PM Passos Coelho, que embora noutras andanças também andou a enriquecer à nossa pala, por exemplo a treinar especialistas para trabalhar em aeroportos que não existiam. Além disso, lembram-se de quando a mãezinha Ferreira Leite andava a falar da situação explosiva da dívida pública e o Passos Coelho lhe minava o caminho, organizando jantares de apoio a ele mesmo e vindo a público elogiar o Sócrates e defender o TGV? O PM tem culpas, ainda que indirectas, no estado a que isto chegou e governa violentamente e furiosamente contra todos nós porque sabe disto, os alemães sabem disto, e os tipos do FMI sabem disto. Ora o mesmo não se aplica aos tipos do Syriza. Eles não estavam a mamar nos tempos do esbanjamento (que obviamente aconteceu e tinha que ser corrigido) e representam os muitos milhões de gregos que igualmente pouco comeram. Poder-se-á fazer muito dos subsídios especiais dos funcionários públicos ou dos pensionistas, mas na grécia como aqui, esses exageros e disfunções fazem parte de um sistema corrompido a partir de cima e para os de cima. É normal que no meio da corrupção geral um grego normal se aproveite do que pode. Os gajos do Syriza não têm nada a perder e pouco a ganhar com o acomodar das exigências irrazoáveis do centro. Espero que continuem até onde for preciso, para que os gregos possam ao menos ter um pouco de dignidade na pobreza que lhes foi imposta e que continuará por muitos anos, com ou sem Euro e a UE.

Finalmente há a dimensão mais filha-da-puta no meio disto tudo, aquela que não deveria importar de todo mas que é na verdade a mais importante: a atribuição de um carácter moral à dívida. Subjacente às más ideias económicas com que nos fustigam regularmente o PM, a Merkel e o resto da cambada, está a ideia de que a dívida é uma questão moral e que não pagá-la seria uma vergonha individual e colectiva. Mais uma vez, a ver se me faço entender: bardamerda! A contracção de dívida é um contrato em que um lado pede dinheiro emprestado para investir numa coisa, esperando que esse investmento tenha retorno (económico ou outro), e o outro lado empresta esperando obter lucro. Ambos os lados assumem uma certa dose de risco, que cresce à medida que crescem os valores. Se é verdade que os governos grego e português andaram a fazer merda, pedindo dinheiro emprestado para fazer maus investimentos sem retorno, também é verdade que os bancos tinham a obrigação de monitorizar a capacidade de esses mesmos governos lhes pagarem de volta.Correu mal, só que os bancos andam a tentar escapar-se como se não soubessem de nada. Isto meus amigos é uma questão prática, que deveria ter sido tratada de forma prática, sem invocar a merda da culpa cristã que nos faz aguentar indignidades que ainda por cima não funcionam. Em vez disso temos uma mistura de piedade católica com um discurso tecnocrático violentamente aborrecido. Se o Syriza for capaz de arrebentar com isto e dizer: se querem moralidade, pensem na moral de forçar milhões de pessoas à pobreza para pagar dívidas impagáveis - então já terá vencido.





*Essa treta de justificar o direito do governo grego de implementar o seu programa com base na legitimidade democrática é isso mesmo, uma treta. Não porque a dita cuja legitimidade não interesse, mas sim porque todas as relações humanas são aconchegadas por assimetrias de poder que nunca se resolvem. Com ou sem UE, FMI, ou outra merda qualquer, qualquer país terá sempre que lidar com pressões, desistências, compromissos e etc.