domingo, 22 de março de 2015

Longa, má e merdosa

No outro dia vi um indivíduo num consulado português, que renovava o cartão do cidadão. O tipo era tuga mas mal falava português e inglês tão pouco. Teria uns 40 anos, mas tinha um ar tão acabado que tanto poderia ter 25 (e estar muito estragado) ou ter 50 (e estar apenas normalmente estragado). O funcionário que nos atendia, que comigo e com as minhas acompanhantes foi simpático, tratou-o mal. Vestido, metaforicamente, com a minha peruca empoeirada, a minha camisa de lantejoulas e os meus cullots, senti-me culpado. Vi através desta curta interacção social como são as merdas. Só que era tão confortável ser bem tratado, que quando o funcionário voltou para concluir o meu processo sorri-lhe e continuei a nossa dança de gente-de-bem a viver fora do país, que claramente nada tem a ver com estes pobretanas, em vez de lhe dizer que se ele não fosse um beto de merda, que conseguiu emprego no consulado seguramente à custa do caralho de uma cunha, talvez estivesse do outro lado do balcão a necessitar de ajuda para não morrer à fome. Filhos-da-puta, ele e eu.

Que vida terá aquele gajo, o português que mal fala português? Vai na volta é mais feliz do que eu. Não me refiro à ideia da felicidade dos ignorantes, porque isso é um conceito de merda inventado pelos burgueses melancólicos, que gostam de romantizar a pobreza e a barbárie. Ser pobre é fodido, não ter capital social nem capital normal, nem competências que possam ser realçadas num currículo de forma a conseguir aquela primeira entrevista, na qual com uma mistura de charme e uma atitude empreendedora, mas ainda assim humilde, conseguimos convencer o potencial empregador a dar-nos dinheiro em troca de fingirmos todos que aquilo no qual trabalhamos vale um pintelho.  Ao olhar para este tipo imaginei que ele teria uma vida de merda, com um emprego de merda, com um patrão de merda, com uns filhos de merda que andam na rua armados em mitras e uma mulher que o despreza, por lhe dar apenas esta vida de merda. Mas se calhar enganei-me, se calhar o gajo tem dinheiro e na comunidade dele é o rei. Ainda assim apenas o consigo visualizar como o rei da merda, tipo um proprietário de casas para pobres, imigrantes ilegais e carochos, tipo slum landlord, conhecidos nos bairros pobres americanos como mais filhos-da-puta que todos os outros, pois ao menos os restantes ricos vivem isolados da pobreza e podem fingir que não sabem das suas verdadeiras consequências.

Claro que no meio disto tudo o estúpido sou eu. A minha culpa esquerdista impede-me de o ignorar, ou de o desprezar da mesma forma que o interlocutor do consulado, o meu conforto impede-me de o ajudar e os meus preconceitos impedem-me de imaginar uma vida para ele fora de determinados parâmetros (esta última parte não interessa para nada, pois o meu imaginar em nada influencia a vida deste caralho). Soluções tenho poucas. Perante isto, e tenho consciência que estou a extrapolar muitas coisas de um episódio insignificante, um gajo ou ganha um sentido mais exacerbado da sua importância neste mundo e dedica-se activamente a procurar uma vida melhor para todos ou fecha-se num niilismo frouxito, assente na convicção de que tudo o que que nos rodeia neste momento não passa de um peido num vendaval. Pondo tudo isto em contexto, transversal ou temporal, somos apenas uma fracção de um grão de areia nas galáxias e planetas que por aí andam, ou uma fracção de segundo nos milhões de anos que nos precederam e que ainda sobram na história do universo. Só que mesmo um ateu como eu, que não atribui objectivos metafísicos à existência, nem adopta uma visão teleológica da evolução, não pode deixar de considerar a vida como uma coisa única e especial. É exactamente a aleatoridade da nossa existência, não só enquanto espécie mas também enquanto indivíduos, que me leva a não desistir de considerar a vida como algo de importante, que deve ser protegido e melhorado.

Só que isto leva a outros problemas. Como melhoramos a vida das pessoas? Atenção, vivo num país desenvolvido, com um sistema nacional de saúde, educação quase gratuita e outros serviços sociais. Ninguém está a morrer à fome neste contexto e só pessoas no extremo do mal-estar é que vivem na rua. Logo estou a a falar de uma melhoria que de certo modo entra no foro privado das pessoas. Trata-se de os ajudar a levar uma vida menos merdosa, ou menos violenta, ou menos auto-destrutiva, o que implicaria certamente interferir com as suas decisões individuais. Quem sou eu para o fazer? Todas as minhas decisões são boas? Foda-se! Certamente haverá quem ache que tendo em conta a minha posição inicial de partida na vida poderia ter conseguido muito mais. Se essas pessoas tentassem interferir com as minhas decisões dava-lhes um pontapé no filho-da-puta do rabo. Em termos estruturais, a educação apenas é solução no longo-prazo e sempre com falhas, os serviços sociais apenas ajudam nalguns casos e o terceiro sector não resolve nada. Salários em condições normalmente ajudam, mas no momento político em que vivemos ganhou o outro lado, aquele que gosta de pagar mal e esmifrar os trabalhadores.

Pouco me resta excepto a solidariedade silenciosa e um esforço individual para pelo menos dar uma vida boa aos que me rodeiam, o que está muito para lá da simples contribuição material e inclui o esforço de criar um clima conducível ao desenvolvimento pleno do nosso potencial. Quanto ao resto continuarei à procura do melhor veículo.