terça-feira, 24 de março de 2015

Sou pai

Quem diz que ser pai é a melhor coisa do mundo está a exagerar ou a mentir ou então teve uma vida muito triste. Dizer que uma coisa é a melhor do mundo remete ou para um evento limitado no tempo, durante o qual experienciámos uma felicidade quase ininterrupta, ou então para uma análise retrospetiva de uma série de eventos, necessariamente sumária e filtrada pela memória que impõe ao passado o desejo de fazer as coisas parecerem melhores do que foram na verdade. Ora tanto num caso como no outro há coisas que claramente melhor se adequam a esta caracterização. Por exemplo o sexo, enquanto um desses eventos limitados no tempo, ou as várias relações sexuais que temos ao longo da vida, enquanto a tal série de eventos. Ser pai não é isto.

Ser pai é uma série de pequenas ações, esforços, atos de amor, tarefas rotineiras e tentativas de não perder a paciência, frequentemente executados num estado de cansaço que vai para lá do cansaço normal, aquele que sentia antes de ser pai quando tinha dormido pouco, ou feito desporto, ou trabalhado muito (ah!) ou estava de ressaca, mas que pelo contrário é um cansaço miudinho mas persistente, feito pior porque sabemos que não haverá uma pausa, nunca mais. A primeira sensação forte que tive depois de ser pai, após ter garantido que estava tudo bem com a mãe e que a pequena estava saudável, não foi um amor visceral, que me subiu pela espinha e me deixou num estado de êxtase, tal como o descreveram outros pais, mas sim a realização de que a partir deste momento tinha uma responsabilidade em relação à qual não há pausas. Isto é um sentimento único, que não é particularmente bonito ou romântico, mas claramente distintivo, que marcou para mim a transição de pai expetante para pai real: a partir de agora tenho que tomar conta de uma pessoa que depende de mim, que é frágil, que durante muitos anos vai ser demasiado imatura para tomar decisões importantes, e que mesmo depois de ser matura vai continuar a tomar decisões de merda, que vai precisar de mim para comer, para se limpar, para adormecer e em nenhum momento vou poder dizer: pronto, é fim-de-semana, vou descansar disto e volto na segunda. Claro, pode-se sempre deixar a miúda com alguém por umas horas ou mesmo dias, mas nunca mais será o mesmo meus amigos.

Claro que depois vem o tal amor visceral. Calculo que para a mãe seja uma coisa mais imediata e alguns pais acreditam que para eles também. Para mim foi uma coisa gradual. Tão pouco sentia vazio com a minha pequena, mas há uma coisa, um monstro, que foi crescendo dentro de mim, primeiro apenas no cérebro, depois apareceu no estômago, espalhou-se como um tumor e acabou por ocupar tudo cá dentro, que me leva a sentir um amor, um espírito protetor, um desejo de cuidar dela que não se compara a nada mais. Não é a melhor coisa do mundo é outra coisa, mais importante do que isso.

Existem também os momentos especiais, parvos, insignificantes, que para os pais significam muito, como quando ela sorri, ou balbucia qualquer coisa, ou cresce de forma significativa, só que tudo isso é pontuado e disperso. Não é preciso mentir ou exagerar sobre o que é ser pai. Calculo que algumas das coisas que se dizem sobre a paternidade são ditas porque a malta precisa de sentir que há uma razão ulterior para todo o trabalho que têm e então afirmam: é o melhor do mundo, sabendo que não é, mas pensando: se não é o melhor do mundo, para quê tanto trabalho? Tanto trabalho porque os putos nasceram e agora há que cuidar deles, e uma pessoa de jeito tem gosto em fazer bem as merdas que tem de fazer.