segunda-feira, 15 de junho de 2015

A funcionalidade do ser

1. Uma coisa que me intriga, deveras, é que as pessoas tenham um penteado. Eu entendo a razão para tal ocorrência - faz totalmente sentido que como parte da expressão simbólica da nossa identidade, actividade na qual participam as roupas que vestimos, as conversas que temos, os rabos que admiramos e os livros que fingimos ler no autocarro, tenhamos também um penteado, que comunica ao mundo a forma como nós entendemos o posicionamento do nosso cabelo no contexto de uma sociedade globalizada e informacional. O que eu não consigo contemplar é como as pessoas conseguem introduzir na sua rotina diária o cuidado com o cabelo. Especialmente onde vivo, no Reino Unido, diria que 90% ou 95% dos homens têm um penteado que modelam diariamente e sem o qual não saem de casa. Os tipos podem estar na rua de pijama, com umas sandálias rotas e mal-cheirosas e cara de ressaca mas o cabelo estará disposto de acordo com princípios rígidos, que claramente se mantêm inalterados dia após dia até que o indivíduo decida que é altura de encontrar um penteado novo. É uma questão de princípio, imagino, que no meu caso é substituída pelo meu princípio de tomar um duche todos os dias, o que segundo oiço dizer não é tão obrigatório entre os britânicos. Só que se eu conseguisse incorporar no meu quadro abstracto-mental a desnecessidade dos banhos diários não me imagino a substituí-los por uma sessão de gel e pente em frente ao espelho, o que me demonstra uma vez mais que eu sou um homem de uma era diferente, posto no presente com o objectivo claro de me obrigar a viver desconfortável e com um sentimento recursivo de desajustamento para com a realidade.

2. Se pudesse escolher uma outra vida estas seriam as minhas opções, por ordem de preferência:

2.1 Ser o James Franco ou o Pedro Mexia - embora continuasse no presente, periodo histórico com o qual me identifico devido ao facto de aqui residir, teria acesso a uma outra existência. No caso do PM, como já disse antes, teria a possibilidade de encontrar aquele apego pela melancolia e solidão que acho que me traria um sentimento de realização pessoal, ainda que fosse mais infeliz. Já quanto ao JF, trata-se do caminho oposto: o hedonismo e desprendimento só possíveis a quem tem muito dinheiro e uma carreira bem sucedida, que ainda assim lhe deixa tempo para procurar outras formas de expressão artística. Ainda que a maior parte do que ele faz seja pouco interessante, isso não interessa.

2.2 Ser uma personagem influente mas trágica num momento revolucionário do passado. Por exemplo um Danton na revolução Francesa, um Trotsky na revolução Russa ou um Che Guevara. Tenho poucas simpatias pelas ideias ou práticas dos ditos cujos, mas não nego que existe dentro de mim um desejo patético e pouco sério de acumular poder muito rapidamente, usá-lo de forma excessiva e caótica, e morrer rapidamente, permitindo a minha projecção futura como mártir ou assassino, dependendo de quem observa.

2.3 Viver num mosteiro isolado do mundo. Mas teria que ser mesmo isolado, para que ninguém viesse regularmente perguntar-me se acredito em Deus, o que me obrigaria a mentir, pois obviamente quereria manter o meu ateísmo rígido. Passaria o dia a coser pão, a fazer cerveja artesanal e a ler (talvez também a escrever, se encontrasse razão para tal) e ocasionalmente punha-me de joelhos na igreja para dormir a sesta. Convinha também que este convento fosse muito aberto em determinadas questões morais, para que pudesse haver rambóia com fartura.

Acho que é isto.