terça-feira, 6 de janeiro de 2015

O papel do futebol nas sociedades contemporâneas

Este é um ensaio prospectivo, aprofundado e sistemático sobre o papel do futebol e do futebolista na sociedade contemporânea. Assume-se que o leitor reconhece que vivemos numa sociedade pós-moderna, informacional, globalizada e em rede e que tem consciência do que isso significa para o assunto em questão, nomeadamente no que respeita à financialização da economia e à erosão das formas de poder tradicionais, pós facto, ex-ante, inter alia, ceteris paribum. 
 
Chega pois ao fim a época natalícia, período em que os jornalistas deste nosso belo país visitam eventos patrocinados pelos betos de Cascais e da Lapa, para demonstrar o bonito e recomendável espirito natalício. Há quem reclame futilmente que estas coisas deveriam ocorrer o ano todo, ignorando que o problema não é a falta de espírito caridoso entre aqueles que supervisionam o bem-estar natalício dos que menos têm (eufemismo usado nesta altura para falar de pessoas com vidas de merda), mas sim a falta de chá dos pobres que insistem em ter fome e necessidades quando não é Natal. 
 
Mas o que importa verdadeiramente, como de costume, permanece invisível ao olho semi-nú: a fúria com que as pessoas de bem se dedicam à caridade nesta altura, serve para exacerbar o contraste com a vida desgraçada que calha aos pobres no resto do ano neste nosso belo país e como tal contribui para o enraizamento de uma cultura social-democrática em Portugal. De cada vez que vejo uma tia de peruca na TV a falar de como é importante para toda a sua família jantar com os pobrezinhos de Lisboa no Natal, algo que fazem há mais de 200 anos como tradição familiar, e que ajuda a inculcar na sua prole a humildade católica tão importante para a reprodução social das elites, apetece-me pegar numa espingarda, levá-los para o Campo Pequeno e fuzilá-los com balas rebuçadas com merda de cão vadio (aos incautos que por aqui passem e se sintam ofendidos pela irresponsabilidade do meu apelo à violência, saibam que isto é tudo muito pequeno-burguês e inconsequente). 
 
O que isto significa é que embora esta caridade conjuntural possa chocar as consciências frágeis da esquerda intelectual, na qual orgulhosamente me incluo, o efeito colateral é empurrar o processo histórico uns milímetros na direcção que pretendemos: o fortalecimento do estado social, que deveria obviamente e irrevogavelmente garantir a todos os cidadãos um mínimo de condições de vida, de forma a poderem evitar essa tragédia anual que é o serem forçados a jantar no dia 24 de Dezembro com uma tia de Cascais, que ainda por cima não lhes dá o pito. As pessoas boas que infelizmente vivem na rua não merecem tal indignidade.