quinta-feira, 13 de novembro de 2014

A fúria burguesa


Quando este vídeo saiu não comentei, em parte porque este blog ainda não existia e em parte porque.

O impacto que teve foi o esperado: um tumulto breve, seguido de indiferença. Apesar de tanta distorção e grunhido, no fim o que se ouvia na pacatez deste nosso belo país era o barulho dos grilos, indiferentes à sua falta de consciência de classe. A culpa, claro está, não é dos Mão Morta, mas da falta de mecanismos de difusão e discussão de ideias, que permitam manter em debate público um assunto que não esteja directamente ligado à agenda restrita dos partidos políticos e de meia dúzia de pessoas de bem. Fora das caixas de comentários, pouco existe em Portugal para esse efeito.

(Gosto muito dos Mão Morta. O meu álbum favorito destes animais é o 'Há já muito tempo que nesta latrina o ar se tornou irrespirável'. Comprei-o há mais de uma década e ouvi-o pelo menos umas 277.000 vezes. Isto é um aparte irrelevante para o que quero dizer, mas ponho-o aqui caso queiram ir ouvi-lo.)

O vídeo em si é interessante mas frustrante. Primeiro aquela coisa anacrónica de começar por matar o padre, como se a igreja católica fosse hoje em dia minimamente relevante do ponto de vista político . Depois a linguagem em si, que embora agressiva é ao mesmo tempo conservadora, usando um tom e conteúdo pouco diferentes do que se ouviria nos anos 70 ou 80. Além do mais com aquela veia triunfalista, imaginando uma multidão raivosa que perde o controlo e toma por assalto os centros de poder, o que distancia ainda mais o conteúdo da canção, da vida portuguesa actual (óbvio que não tinha que ser esse o seu objectivo). Mas o mais frustrante é que isto não é uma manifestação desregrada de frustração, com potencial para destabilizar o ambiente. Pelo contrário, é um acto bastante burguês, que permite extravasar num contexto estéril e inconsequente a raiva que sentimos pela situação, sem que daí resulte algo de verdadeiramente perigoso. Apesar de terem sido os intelectuais a escrever a História, e terem como tal mistificado momentos em que eles assumiram protagonismo (como o Maio de 68) as revoluções raramente começaram por aqui. Historicamente a mudança (digo isto sem recolher absolutamente nenhuma informação que o comprove) partiu dos exércitos, dos camponeses esfomeados, dos líderes religiosos, dos analfabetos radicalizados. Não será por causa deste vídeo que haverá tumulto em Portugal.

Só mais uma coisita: até gosto da música, especialmente daquele coro. A minha mãe canta uma coisa semelhante para entreter a minha filha: laaaaaa la, la la laaaa la, la la la laaa la laa, la laaa laa. Fico feliz também que se tenham vestidos todos de preto, como os anarquistas, em vez de vermelho, como os comunistas. Se é para sonhar há que fazê-lo em grande!