Isto lembra-me um texto que li há uns bons anos do Júlio
Carrapato, o anarquista algarvio e porventura a pessoa mais espectacular de
sempre. O Júlio contava que foi convidado, juntamente com outras eminências
nacionais, para fazer parte da audiência num programa televisivo em que iam
entrevistar o Álvaro Cunhal. O Júlio, como bom anarquista que é, deplora o
materialismo histórico com o mesmo vigor com que se maravilha perante as
tragédias do capitalismo; e assim como um guerrilheiro afiliado à CNT apontando a sua
carabina aos fascistas do partido comunista aquartelados no outro lado das
Ramblas, o Júlio preparou-se para arrasar o Cunhal, com quatro (ou cinco, agora
não me lembro) questões-ensaio, em que por um lado atacava o marxismo
não-reconstruído do dito cujo e por outro desconstruía o mito que se formava em
seu redor no pós 25 de Abril. O Júlio, apesar da sua erudição, ou talvez por causa dela, claramente sofre de
uma dissonância cognitiva que lhe impediu de ver que ninguém o queria ali para
questionar o quer que fosse, mas apenas para convergir totalmente ou divergir
apenas ao de leve com a narrativa oficial que já na altura se desenhava na
cabeça dos entrevistadores: as ideias de Cunhal são más, mas há que apreciar a
coerência do homem. Ou seja, não lhe deixaram perguntar nada de jeito e a
questão truncada que lhe foi permitido fazer foi tratada com derisão pelo
Cunhal (derisão… sou mesmo culto).
Mas o que importa não é isto. O Júlio descreveu com pormenor
os detalhes da viagem, paga pela RTP, incluindo os croquetes que lhe foram
servidos antes do programa para forrar o estômago. Tudo isto é muito anacrónico
claro. Quem é que se daria ao trabalho de convidar o anarquista de Loulé hoje
em dia, para assistir ao prós e contras por exemplo, e lhe pagaria o jantar? No
fim, o Júlio argumenta que não teve vergonha absolutamente nenhuma de aceitar
os presentes envenenados do capitalismo. Pelo contrário, a existir um convite
futuro, exigiria um hotel melhor e um jantar mais apropriado. O Júlio tem
obviamente razão. Essas merdas de forçar a modéstia e a piedade andando
descalço (metaforicamente) quando alguém nos oferece uns sapatos de 500Euro é
uma ideia de cagalhão. Há que dizer que sim, exigir ainda melhor e no fim não
agradecer. Há limites claro, a partir dos quais deixamos de ser apenas um peão
que procura aproveitar os confortos da vida pequeno-burguesa e nos tornamos no
agente de opressão que impede muitos mais de sequer ter água potável. Admito
que no limite isto seja como a arte: o valor está nos olhos do observador. Mas
fora desse limite, deverá ser claro quando estais a ser uns filhos-da-puta e
quando estais a tentar ser pelo menos pessoas decentes.
Claro que isto tudo serve apenas para me justificar perante
os deuses pouco perdulários das pessoas de bem.