quinta-feira, 20 de novembro de 2014

A natureza das coisas

Como compete ao bom intelectual burguês da esquerda bêbeda, estou a escrever esta coisa num avião, enquanto transito de uma capital regional europeia para outra, com paragem numa capital nacional para mudar de avioneta. Além disso, este texto materializa-se perante os meus olhos (para espanto do meu cérebro exausto que foi obrigado a acordar às 4 da matina para apanhar um caralho dum voo à puta das 6 horas da manhã) numa tablete daquelas novas da Microsoft. Digo isto para impressionar as pessoas com o glamour que cintila que nem brilhantina sobre a minha vida. Além disso sou ateu, só para que saibam.

Isto lembra-me um texto que li há uns bons anos do Júlio Carrapato, o anarquista algarvio e porventura a pessoa mais espectacular de sempre. O Júlio contava que foi convidado, juntamente com outras eminências nacionais, para fazer parte da audiência num programa televisivo em que iam entrevistar o Álvaro Cunhal. O Júlio, como bom anarquista que é, deplora o materialismo histórico com o mesmo vigor com que se maravilha perante as tragédias do capitalismo; e assim como um guerrilheiro afiliado à CNT apontando a sua carabina aos fascistas do partido comunista aquartelados no outro lado das Ramblas, o Júlio preparou-se para arrasar o Cunhal, com quatro (ou cinco, agora não me lembro) questões-ensaio, em que por um lado atacava o marxismo não-reconstruído do dito cujo e por outro desconstruía o mito que se formava em seu redor no pós 25 de Abril. O Júlio, apesar da sua erudição,  ou talvez por causa dela, claramente sofre de uma dissonância cognitiva que lhe impediu de ver que ninguém o queria ali para questionar o quer que fosse, mas apenas para convergir totalmente ou divergir apenas ao de leve com a narrativa oficial que já na altura se desenhava na cabeça dos entrevistadores: as ideias de Cunhal são más, mas há que apreciar a coerência do homem. Ou seja, não lhe deixaram perguntar nada de jeito e a questão truncada que lhe foi permitido fazer foi tratada com derisão pelo Cunhal (derisão… sou mesmo culto).

Mas o que importa não é isto. O Júlio descreveu com pormenor os detalhes da viagem, paga pela RTP, incluindo os croquetes que lhe foram servidos antes do programa para forrar o estômago. Tudo isto é muito anacrónico claro. Quem é que se daria ao trabalho de convidar o anarquista de Loulé hoje em dia, para assistir ao prós e contras por exemplo, e lhe pagaria o jantar? No fim, o Júlio argumenta que não teve vergonha absolutamente nenhuma de aceitar os presentes envenenados do capitalismo. Pelo contrário, a existir um convite futuro, exigiria um hotel melhor e um jantar mais apropriado. O Júlio tem obviamente razão. Essas merdas de forçar a modéstia e a piedade andando descalço (metaforicamente) quando alguém nos oferece uns sapatos de 500Euro é uma ideia de cagalhão. Há que dizer que sim, exigir ainda melhor e no fim não agradecer. Há limites claro, a partir dos quais deixamos de ser apenas um peão que procura aproveitar os confortos da vida pequeno-burguesa e nos tornamos no agente de opressão que impede muitos mais de sequer ter água potável. Admito que no limite isto seja como a arte: o valor está nos olhos do observador. Mas fora desse limite, deverá ser claro quando estais a ser uns filhos-da-puta e quando estais a tentar ser pelo menos pessoas decentes.

Claro que isto tudo serve apenas para me justificar perante os deuses pouco perdulários das pessoas de bem.